segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Arthur van Schendel, por Otto Maria Carpeaux

UM PRÊMIO NOBEL PARA A HOLANDA
Por Otto Maria Carpeaux


Um grupo de admiradores do romancista holandês Arthur van Schendel pediu para ele o Prêmio Nobel de Literatura, distinção que nunca, ainda, foi conferida aos Países Baixos. Embora a Holanda, situada entre a França, a Inglaterra, e a Alemanha, seja  espécie de espelho da Europa, reunindo em seu seio as convicções cristãs mais firmes e um socialismo radical mais consciente das suas responsabilidades culturais, reunindo as qualidades da liberdade inglesa, do espírito crítico francês e da solidez científica alemã – nunca o mundo deu muito importância à literatura holandesa; dos tempos passados, do grande Barroco holandês do século XVII, dos Hooft, Bredero, Vondel, Dullsert, nem se fala; mas o mundo tampouco tomou conhecimento da poesia admirável da "geração de 1889", dos Perk, Kloos, Gorter, de que são os herdeiros, hoje, a poetisa Henriette Roland Holst e aquele romancista Arthur van Schendel.
Contudo, ele parece o escritor mais lido do seu país em nosso tempo: mas foi justamente esse fato que causou na própria Holanda forte oposição contra as reivindicações dos seus admiradores. Há quem achasse a obra de Van Schendel indigna da mais alta distinção literária porque se trata de literatura "brilhante" e no fundo evasionista, espelho de uma Europa "satisfeita" que já não existe. Com respeito às obras mais lidas de Van Schendel, as restrições parecem justificadas; traduzem as cartas de amor da religiosa portuguesa, deu biografia meio romanceadas de Shakespeare e Verlaine, escreveu romances pseudo-históricos que se passam na Itália da Renascença e na França  do "Ancien Régime". Sua suposta obra-prima dos anos antes de 1914, "Een zwerver verliefd" ("Um vagabundo enamorado"), é uma obra típica de um evasionista de alto nível estilístico, mais ou menos assim como um Rilke escreveu antes de tornar o poeta sério dos "Poemas Novos" e das "Elegias de Duíno". Este Van Schendel representa o preciosismo literário de uma época materialmente satisfeita e espiritualmente pouco inquieta. Ou então, para falar em termos holandeses: os  tradicionais escrúpulos religiosos dessa gente nórdica já estavam substituído pelo cosmopolitismo estético de elites requintadas; e a luta tensa contra o mar, que sempre ameaça destruir os campos holandeses bem cultivados, substituída pelo gozo das riquezas do mais fantástico dos Impérios coloniais. O resultado foi uma literatura admirável de alto nível, mas de que o mundo não precisava tomar conhecimento. Até se chegou ao ponto de negar a existência duma poesia holandesa: e os mais grosseiros chegaram a negar a existência duma alma holandesa - em vez de uma alma holandesa apenas possuiriam uma bolsa cheia de dinheiro.
Aí está uma injustiça evidente. Cada um dos povos europeus produziu valores literários especiais, não substituíveis por outros e nunca desistirei de chamar a atenção para essas "pequenas literaturas", por mais que isso desagrade aos comodistas, porque a  Europa  nossa mãe  não é a França nem a Inglaterra nem a Itália, mas sim o conjunto de todas aquelas nações, grandes e pequenas. Esplendor e miséria da Europa residem na sua diversidade de muitas línguas, muitas almas. A alma holandesa também existe. Mas é verdade que não se exprime, principalmente, de maneira literária. Sabe-se que os holandeses são muito laboriosos; mas o seu labor é duma espécie bastante peculiar. Consiste na conquista da própria terra... Durante muitos séculos os holandeses conquistaram, passo a passo, o seu país contra a resistência do elemento hostil, do mar. E com tenacidade incrível defenderam durante séculos o país contra os ataques sempre renovados da água. Essa luta sem fim formou o caráter holandês: homens vigilantes, silenciosos, conscientes de perigos transcendentais da parte dum inimigo implacável. Formou os calvinistas holandeses, sempre à procura de quaisquer pecados ocultos que lhes ameaçam a graça divina, a predestinação de habitar essa terra, a mais pobre da Europa, e de transformá-la na mais rica dos cinco continentes. Homens dessa índole não falam muito. Não se confessam nem se explicam. Não são poetas. Preferem a arte muda da pintura. Mas há uma poesia inconfundível na própria atmosfera holandesa, nas várias planícies úmidas com os inúmeros canais e os solitários moinhos de vento nos confins de horizontes brumosos, no olhar triste das vacas sedentárias, na uniformidade alegre das pequenas casas cor de tijolo, nos navios veleiros que, como espectros fantásticos, descansam silenciosamente nos portos das pequenas cidades caladas. Esperando –  a evasão para o Oriente, para os países de sonho e beleza.
Na Europa ainda não se resolveu o problema transcendental de conferir o sentido, e com isso beleza, à vida do trabalho. A tentação da fuga é grande. Mas, para variar um versos do nosso grande poeta "seria uma viagem, não seria uma solução", Arthur van Schendel também já sucumbira à tentação de evadir-se. Nascido na Batávia, na capital do Império fantástico dos holandeses, sonhava com a Itália da Renascença, com a Inglaterra elisabetana, com a França do "Ancien Régime", enquanto residindo em Haarlem, em Edam, pequenas cidades abafadas da pequena Holanda. Mas a partir de 1939  poder admirável de renovação de um artista - as suas obras, datadas de Florença, de Bellevue, de Sestri Levante, da "Europa, enfim, falam da Holanda; descobrem a alma holandesa.
"A fragata Joana Maria", romance escrito em 1930, foi uma segunda estreia, surpreendendo e comovendo a nação. E a história de um daqueles navios veleiros fantásticos, assim como os pintou Willem van de Velde, que ficam solitários e silenciosos no porto da pequena cidade calada, esperando angustiados a hora da fuga para os mares do Oriente. A fragata "Joana Maria" encarna todas as saudades do marujo Jacob Brouwer, que leva a vida toda para apoderar-se do navio dos seus sonhos. Mas quando a "Joana Maria" enfim é sua, revela-se como barca velha e miserável, boa só para fornecer oportunidade de deixar-se cair, numa hora de perturbação, do cordame e encontrar a morte nas águas turvas do porto, onde a fragata "Joana Maria" ficará descansando, solitária e silenciosa.
Arthur van Schendel compreendera afinal que não é preciso procurar nos sete mares do sonho a verdadeira significação da água que é o destino dos holandeses. É a mesma água misteriosa, a dos rios e canais da Holanda, que constitui o destino de Maarten Rossaart, personagem principal do romance "O homem da água", Maarten é um fascinado: com a tenacidade fanática do calvinista dedica-se à luta silenciosa contra o elemento que é, nas viagens solitárias do marinheiro de água doce, seu único companheiro. Sempre fica dirigindo seu navio água abaixo, em direção ao delta do Reno, através da planície brumosa e dos bosques úmidos que Ruysdael pintou: no fim da viagem espera-o o sol enorme, vermelho, levantando-se sobre o mar livre. Mas depois, sempre é a volta triste rio acima enquanto o sol esconde atrás de horizontes inacessíveis, assim como o terrível Deus dos calvinistas se esconde atrás das nuvens, deixando o homem na noite da sua vida mesquinha e desconsolada.
O símbolo torna-se mais "direto" no romance "Uma tragédia holandesa": Gerbrand Werendonk trabalha durante a vida inteira, arruinando sua existência e a dos seus, para restituir o dinheiro furtado delo pai. Essa gente, trabalhando heroicamente, não tem nada de heróica. Van Schendel, na sua segunda fase, é romancista de vidas triviais e até mesquinhas. Mas o quadro escuro, frio e incômodo em que Gerbrand Werendonk faz de noite as contas dos seus pequenos negócios, procurando verificar, angustiado, se a dívida já diminuiu, esse quarto escuro está, como num quadro claro-escuro de Rembrandt, secretamente iluminado por uma luz interna que se assemelha ao sol sobre os rios e canais de Maarten Rossaart, o sol do Deus terrível e longínquo que reina sobre essas almas assustadas e escurecidas.
A mesma luz interior ilumina os passeios noturnos de Engelbertus Kompaan, no "Homem rico", passeios solitários ao longo dos canais desertos que atravessam a cidade de Amsterdam e nos quais se refletem as casas abandonadas de outras épocas, outrora ricas e brilhantes e as figuras de mendigos e desesperados, candidatos ao suicídio noturno. Engelbertus é possuído pela ideia de desviar tal desgraça, de desperdiçar o seu dinheiro para acalmar a cólera divina. A sua mania filantrópica é  espécie de perversão diabólica do amor cristão. Ela, assim como Gerbrand, pretende expiar um crime que não cometeu. É um Don Quixote holandês, convertendo em dever social e mandamento divino a paixão do trabalho sem finalidade, o sonho recalcado que não é nada senão uma miragem no fundo da água suja de um canal deserto.
Arthur van Schendel, o do primeiro e o da segunda fase, sempre foi poeta. Como poeta, deu voz aos portos mudos de Van de Velde, aos campos mudos de Ruysdael, aos escuros quartos de Rembrandt. Povoou-os de Don Quixote que se acreditam santos, de santos que se acreditam pecadores, de pecadores que se salvam pelo trabalho silencioso, única salvação da consciência. É esta mesma a última profissão de fé de Arthur van Schendel, fé de um descrente mas ainda capaz de deslocar as montanhas da desgraça: pela vontade ferrenha de cumprir sempre, cada dia e a todo momento, o seu dever. E nada mais. Sabedoria triste e morosa; mas constitui, conforme acredita Van Schendel, a força invencível da alma holandesa e do Ocidente.
Esse resultado da "segunda fase" de Van Schendel corresponde à "segunda fase" da própria Europa. Enquanto Van Schendel, o da "primeira fase", parecia escritor universal e europeu, apenas foi uma evasionista de dimensões regionalistas; quando ele se voltava para sua Holanda regional, começou a dar forma aos problemas da Europa do seu e do nosso tempo, visto através de um temperamento holandês. As almas pobres e mesquinhas da sua gente são símbolos de humanidade sofredora. As pequenas cidades e os canais desertos da sua terra são purgatórios silenciosos. E a sabedoria triste do seu dogma, abandonado promete a salvação final, Arthur van Schendel, o mais típico dos holandeses, é o mais europeu dos escritores. Chama-se a defender, mesmo sem fé na colheita, o jardim ameaçado pelo mar; desperdiçar, mesmo sem amor, a vida no serviço dos naufragados; expiar, mesmo sem contrição, o crime que é nosso sem o termo cometido. Pode ser  não está certo – que então a tormenta da consciência se acalme. Também não será a felicidade. Mas é a fidelidade para consigo mesmo. E isto é alguma coisa; se não pé tudo, pelo menos é muito.



Artigo publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 5 de setembro de 1946.
Coincidentemente, Van Schendel morreu seis dias depois da publicação deste artigo, em 11 de setembro. Carpeaux não tinha como saber, já que o anúncio foi feito apenas 50 anos depois, mas Van Schendel foi indicado oficialmente ao Prêmio Nobel, em 1938.


terça-feira, 31 de maio de 2016

Van Doesburg, por Haroldo de Campos

Theo van Doesburg e a nova poesia

por Haroldo de Campos

[mantivemos a ortografia original de Haroldo]

van doesburg: o artista plástico; o arquiteto. pontos de referência obrigatórios para o estudo da evolução criativa de formas nas artes visuais. veja-se, p. ex., a "poetica dell'architettura neoplastica" de bruno zevi, onde há um retrato de corpo inteiro da intensa atividade factiva do artista holandês, inclusive de suas controvertidas relações com a bauhaus de gropius.

van doesburg: o poeta de vanguarda - item pouquíssimo conhecido graças à importante "antologia dos marginais " (anthologie der abseitigen") - "ultimatum que a lucidez de carola giedionwelcker lançou contra o "blacout da história" - foram respostos em circulação alguns poemas de van doesburg. palavras prévias da organizadora: "esta antologia preocupa-se com os poetas cujas obras são de difícil acesso, por não terem interessado aos grandes editores, aparecendo em tiragnes limitadas, de rápido esgotamento. o destino, que lhes recusou um mais amplo círculo de leitores e os relegou a um segundo plano, não nos parece compatível com sua dimensão artística, sua personalidade intensa e sua importância na evolução histórica da poesia." (en passant: manifestação histórica nacional de um análogo processo de escamoteamento da obra de arte - a não reedição das poesias e das invenções em prosa de oswald de andrade, para não falar de inéditos).

van doesburg pertence à categoria dos pintores-poetas (kurt schwitters, kandinsky, klee, raoul hausmann, hans arp), identificável principalmente na moderna literatura de língua alemã, cuja obra, embora, em certos casos, circunstancial e "bissexta", está mais próxima do real sentido criativo de uma nova poesia, por suas características de desnudamento formal, do que a da maioria dos profissionais do verso, peritos-provadores do almbique lírico ou sombrios oficiantes de cinzentas metafísicas, que, malgrado o lance de dados mallarmáico (1897), continuaram e continuam aguando a tradução poética viva.

mas não é só. van doesburg foi dos que mais conscientemente, entre esses experimentalistas, colocou o problema de uma nova forma poética. não ficou nas soluções do tipo kandinsky/arp: uma espécie de abstracionismo temático; transposição, em termos de conceitos verbais, dos efeitos visuais da arte não figurativa, o que incluía um princípio de organização ainda discursivo, não muito diferente da escrita automática. van doesburg não se deteve apenas numa revolução temática, conteudística, que só até certo ponto e táticamente corresponderia a uma nova visão do poema. enfrentou o poema como um problema de relações e procurou resolvê-lo com seu material específico - a palavra - sem apelo a qualquer retórica, ainda que de conteúdos abstratos. seu livro "soldatenverzen" (1976 - "versos de soldado") compõe-se de uma série de poemas com duas, três ou quatro palavras apenas, o "exhibit" que apresentamos (voorbijtrekken de troep" - "tropa em desfile") evidencia este sentido de estrutura rigorosamente econômica, sem intromissão de qualquer resíduo discursivo ou arabesco metafórico, procurando criar, com elementos exclusivamente gráfico-sonoros, uma onomatopeia-ideograma de uma tropa em movimento. não nos iluda o vocabulário militar, próprio da época (1ª guerra mundial - em 1014 van doesburg fora convocado), contradiço também em caligramas de apollinaire ou nas "parole in libertà" de marinetti e sei grupo. no "tropa em desfile" não há nenhuma intenção de arranjo pitográfico exterior, como, p. ex., na metralhadora e na bota do "2e. canonnier conducteur", poema publicado por apollinaire mais ou menos à mesma época (1915); tampouco a figuração por assim dizer "imitativa" da velocidade que ocorre no "après la marne, joffre visite le front en auto" (1919), de marinetti, caos verbal "parolibrista", frenético malabarismo tipográfico desprovido de qualquer vontade construtiva. no poema de van doesburg a noção de organização rígida está sempre presente: pode-se dizer que, descartada a temática circunstancial, já há uma antevisão de um rpoblema concreto de compisição. a invasão do bloco verbal pelo branco da página é calculada de maneira a criar um movimento intrínseco, não "figurado", mas resultante do jogo de fatores de proximidade e semelhança. os cortes em "ransel" e "ruischen", isolando e repetindo no campo visual elementos idênticos de modo a produzir uma espécie de sístole-diástole rítmica (abrir e fechar de espaço); a minimização de estrutura de "ruischen" a "r", resolvendo como um desfecho-silêncio (não um "finale enfático") a andadura da peça, o que lembra certas estruturas análogas da música moderna (webern, p.ex.); a exploração consciente das semelhanças de letras (h/n, e/c), impondo um sentido de ordem às desarticulações do segmento ruischen e contribuindo para a dinâmica desejada; todos esses recursos (para não falar no uso até certo ponto interessante, embora discutível, pela margem de arbitrariedade, de negritos e grifos, intercâmbios de caixa alta e baixa, com função tônicas-focos para uma leitura-partitura oral-visual) dão um nível de interesse extremamente atual às pesquisas de theo van doesburg, que parece ter trazido para sua poesia a disciplina neoplástica do movimento "de stijl" - dique à anarquia dadaísta;futurista; convite a uma poesia nova e construtiva.
outras obras de van doesbrug:

poesia: "volle maan" ("lua cheia") - 1918; "se stem uit de diepte" ("a voz da profundidade") - 1915; "xbeelden" - 1917-1920; "klankbeelden" - 1920.
carola giedion welcker sobre a prosa de van doesburg: "ele procura evocar as palavras elementares e constantes e neutralizar a atmosfera trágica e sentimental. pretende construir uma prosa universal, não-anedótica e pura, em consonância com seus princípios em pintura e em arquitetura". infelizmente, não são reproduzidos enxertos desses invenções em prosa - publicadas na revista "de stijl" e portanto de difícil acesso - na "antologia dos marginais".


Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil de 7 de julho de 1957.


Complementamos esse artigo de Haroldo com a tradução de "Volle maan", de Theo van Doesburg, feita por Mário Faustino A tradução de Faustino também foi publicada no suplemento dominical do Jornal do Brasil, mas a data é ilegível.  


LUA CHEIA

Fujo da cidade.
Estico a vereda.
Procuro os caminhos campestres.
Procuro a lua.
Procuro-me a mim mesmo.
Talvez me encontre.

Lá pela esquina.
Lá o caminho.
Lá está o feno em montes
Lá com minha alma
ao mesmo tempo
quero correr sob o sol da lua.

É uma casa?
Era uma casa
agora é carbúnculo
é uma granja?
era uma granja
Agora é claro e escuro
Será por acaso Feno?
Será por acaso Feno?
Feno foi pela manhã,
agora esguicha a terra
em ouro vivo
e o feno é empréstimo.
E aquilo é água?
Era água uma vez
Agora é madrepérola
Aquilo é um barco?
Foi um barco,
agora ergue-se um escuro pássaro
pela metade fora d’água.
Isto é a minha mão?
Foi uma mão
Agora é uma estranha
Planta branca.

II

A lua está no ar!
A auriargêntea lua.
Um copo é universo
cheio de um líquido prateado
Minha boca jaz à imagem.
Bebo. Bebo luz
O ar é luz.
Respiro luz.
                    Lá bate asagigante.
                    sobre minha cabeça bandonuvem
Quem antes do ouvir
e não do ver nasce?
Qual fogo da luz
não veio a meu semblante?
                   Luz nasce em minhalma
Mal ouvia ainda o pato,
seu grassitar no charco.
Não sabia nem quem nem onde eu era.
Meu peito lento e rápido se abria
Então morri, mas logo outra vez vivia.

  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Marnix Gijsen - por Otto Maria Carpeaux

O MARIDO DE SUSANA

Por Otto Maria Carpeaux

O livro em questão tem algo de escandaloso. Três vezes, nos momentos decisivos do enredo, lança-se à heroína do romance a palavra..., bem, não é a palavra “prostituta” nem “meretriz” mas sim expressão mais popular que nunca que se imprime em letras de forma. Sobretudo não se diz isso a uma mulher tão pura que é ainda por cima heroína de um livro bíblico, do qual aquele romance é a paródia irreverente. Nem se falaria de obra tão escandalosa assim se não for escrita com tanta arte que merece bem o apelido de “clássico”.
Infelizmente, “clássico” de uma literatura desconhecida e por isso desconsiderada entre nós: da holandesa. Mas com aquelas indicações acredito ter bastante preparado o terreno para poder enfrentar a costumeira objeção contra “ilustres desconhecidos”. Um desses – até pouco tempo Kafka também pertenceu ao grupo – é o flamengo Marnix Gijsen, poeta que já cantou em moderníssimos versos o elogio de São Francisco de Assis e depois o da sua cidade natal de Antuérpia. Seu nome romance chama-se: “O livro de Joaquim da Babilonia, isto é, a relação sincera da sua vida e da vida de sua célebre esposa, Susana”. Saiu em 1948; o editor, A.M. Stols, em Haia, já pode anunciar a oitava edição, o que se deve, talvez, mais ao escândalo daquela palavra três vezes repetidas do que ao incontestável valor da obra. Contudo, nem isso garante a futura tradução para nossa língua- mas seria isso motivo para não tomar conhecimento? A literatura holandesa não é mundialmente conhecida. Mas não se encontram porventura no mesmo casa certos valores universais da literatura brasileira? Em “Joaquim da Babilônia” também encontrei valores universais: literário,s emocionais e até filosóficos; Marnix Gijsen tratou deles com uma clareza luminosa, uma coragem, uma digamos grandeza d’alma que são raras em toda a literatura contemporânea, de modo que o cronista, ciente da estranha mensagem do marido da bíblica Susana, está com dever de transmiti-la. Mas o que é, enfim, que nos tem de dizer esse Joaquim pré-histórico?
“Joaquim da Babilônia” é uma espécie de paródia de relato bíblico: da história da casta Susana que foi espiada no banho por dois velhos safados e, tendo resistido às propostas indecentes, denunciada como adúltera. Quase teria sofrido o pior se o inspirado profeta Daniel não tivesse revelado a verdade. Foi ele mesmo que escreveu mais tarde o livro bíblico, como necrológio da mulher mais pura de todos os tempos. Mas quando o marido de Susana o leu, achou muito incompleto. Daniel, espécie de mistura de poeta lunático e esperto chefe de publicidade da virtude, nem achara necessário mencionar o nome do marido – diz apenas “um judeu rico”, o que seria mera tautologia, assim como “historiador erudito/’ ou “sacerdote piedoso”. Daí Joaquim, embora já submerso nas trevas da história Do Oriente antigo, resolveu escrever aquela “relação sincera”, do seu próprio ponto de vista de marido da bela Susana, tão pura que só ele, o marido, a conhecia realmente. Sua relação será diferente.
A beleza de Susana deslumbrou a todos. Até aqueles dois velhos sábios não resistiram à tentação de desgraçar, se fosse possível, virtude tão fascinante. Mas ele, assim como todo mundo, não sabiam. Joaquim sabe melhor: Susana foi estéril. Não podia ter filhos. Não lhe ficou outro caminho para perpetuar-se do que a gloria de ter renunciado ao amor e enfim a tudo o que é humano. A sua virtude virou profissão e enfim instituição pública. E contra essa verdade oficial, lavrou Joaquim seu protesto.
Joaquim viajara muito. Conheceu, como comerciante viajante, todo o Oriente antigo, seus tesouros, perfumes, religiões e odaliscas, o Egito, a Grécia e países desconhecidos do Norte; um Ulisses oriental, não encontrando a paz de alma em parte alguma, nem na casa e cama de Susana, bela com uma estátua, que o abraçou sem o amar. Mas era ciumenta. Não tolerava outros deuses ao seu lado, nem sequer o Trabalho. Numa ocasião dessas, quando a estéril lhe quis vedar essa mais pura das satisfações, Joaquim cochichou pela primeira vez, meio brincando, aquela palavra fatídica: digamos “meretriz”. Depois, o povo, acreditando na falsa acusação, repetiu aquela mesma palavra, gritando. Enfim, quando Joaquim devia fazer o discurso de i9nauguração do monumento, dedicando à virtude da sua mulher ainda em vida, curvou-se no fim entre aplausos para ela, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. Do livro não consta nada mais; explicação nenhuma. E “qu’est-ce que cela prouve?” Aquela palavra três vezes repetida é mesmo a chave da obra enigmática.
Na primeira vez, é apenas o protesto do pagão oriental que escreveu o lvrio contra o culto puritano da virtude abstrata. Pois, embopra Joaquim tenha sido “judeu rico”, conforme o profeta Daniel, foi na verdade do espírito grego: o poeta flamengo Marnix Gijsen tampouco é grego por nascimento, mas só um grego saberia escrever estilo tão classicamente sóbrio, sazonando a descrição do Oriente antigo com anacronismos tão deliciosamente irônicos que atrás da Babilônia do romance se levanta a imagem do nosso mundo de hoje, com nossos comerciantes e sábios, mulheres (públicas ou não) e velhos às mais das vezes safados e com o poder publicitário da verdade oficial. No estilo reside o valor literário da obra. Mas seria pouco, isso.
Na segunda vez, aquela palavra exprime apenas a fúria do mundo vulgar e incompreensivo contra a Beleza: gostariam de destruí-la porque a consideram como privilégio. Mas não sabem como ela faz sofrer. Na cena da falsa acusação, que sofre parece Susana, sacrificada às falsas convenções da Sociedade. Mas Joaquim sabe melhor. De maneira paradoxal defende os dois velhos safados – “o desejo, num sexagenário, não é vergonha, mas sinal de força” – visitando-os na prisão antes de eles serem executados; e, mais paradoxalmente, são eles que procuram inspirar-lhe coragem. Quem sofre na verdade é esse Ulisses oriental, Ulisses o “sofredor divino” – símbolo do homem “tout court” na Babilônia da nossa civilização, indivíduo representativo, sacrificado aos valores convencionais dos quais um dos mais fortes e mais ferrenhos é a convenção do matrimônio. Aí reside o impulso emocional da obra, explicando as palavras solenes da última página:
“Adeus, enfim, á leitor desconhecido; Joaquim da Babilônia sauda-te. Por um instante ele surgiu do reino das sombras; agora, volta a desaparecer. Mas teria aparecido em vão se ninguém reparasse a gota de sangue do coração no seu caminho.” Os leitores de 7 edições repararam? “Joaquim da Babilônia” é livro para homens maduros, saturados de dolorosa experiência de vida. Livro temível que parece tratar apenas da esterilidade da Beleza, com maiúscula – mas, dizia Milton, “queres colocar o matrimônio ou qualquer outra instituição acima da exigência clara da misericórdia, este é ´fariseu.”. Joaquim, porém, escreveu sua parábola, que pareceu só tratar do matrimônio, para advertir contra a idolatria “da Virtude ou do Vício ou da Beleza ou da Glória ou do Trabalho” e de todas as instituições antropófagas da nossa civilização babilônica que nos fazem perder a alma. A virtude de Susana torna-se “instituição pública” assim; e por isso Joaquim virou-se para ela, dizendo-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. A Bíblia, menos pudica nas expressões, fala mesmo, no Apocalipse, da “Grande Meretriz da Babilônia”. E ainda vivemos na Babilônia.
Da boca dos condenados recebeu, porém, Joaquim a lição da coragem que se parece com o conselho de remoto patrício holandês de quem escreveu essa história; dizia o Taciturno: “Point n’est besoin d’espérer pour entreprendre, ni de réussir por persévérer”. Para transmitir-nos essa mensagem, para sabermos que não estamos condenados se o quisermos assim, surgiu do reino das sombras o pré-histórico Joaquim: um ilustre desconhecido que saúda a nós, leitores desconhecidos, como homem e como irmão.



Texto originalmente publicado no Suplemento de “A manhã” em 10/07/1949

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Henriette Roland Holst e W.F. Hermans - por O.M. Carpeaux

A fé perdida
Otto Maria Carpeaux

Encontrei pessoas muito cultas, apreciadora da grande pintura holandesa, sabendo também que esse pequeno país é o berço da filologia moderna, da ciência comparada das religiões, de grandes descobertas nos setores de física e biologia – mas duvidam da existência de uma literatura holandesa. A pouco divulgação da língua serve de desculpa a quem ignora os Vondel e Bredero e Dullaart, os Multatuli e Perk, os Kloos e Van Schendel, nomes apenas, mas dos maiores nomes da literatura universal de que a holandesa, nascida no “carrefour” das civilizações francesa, alemã e inglesa, sempre foi e ainda é um microcosmo. Também ela é barômetro para medir certas pressões e tensões. O crítico literário sempre deveria acompanhá-la. Dois acontecimentos holandeses recentes sirvam de exemplo.
O primeiro desse acontecimentos foi a morte da maior poetisa de língua holandesa, Henriette Roland Holst. Morreu aos 83 anos de idade, sem ter recebido o Prêmio Nobel, provavelmente por preconceitos ideológicos. No entanto, a Holanda, país do calvinismo mais ortodoxo e de uma minoria católica muito zelosa, quase agressiva, lamentou unanimente a morte da poetisa socialista.
A religião é, na raiz, tudo na Holanda. Apenas são diferentes os credos. Entre os intelectuais de 1880, quando Henriette Roland Holst entrou na vida literária, o credo dominante era o da beleza: parnasianas que ou (pré-simbolistas) substituam o ideal de perfeição moral dos antepassados pelo da perfeição estática. Sonetos e tercetos são as primeiras poesias de Henriette Roland Holst. Mas não foi acaso a escolha do metro de Dante. A vida moderna parecia feia aos esteticistas da época; à poetisa parecia um inferno, que descreveu num livro sobre “As relações entre o capital e o trabalho na Holanda”. Como Dante, que ela admirava muito, quis tomar partido para dizer o que convinha dizer à cidade. Vinte anos mais tarde, a sonetista escreverá um tratado sobre “A ação revolucionárias das massas”. Em 1918, o volume de versos “Fronteiras abolidas’ saudará a revolução na Rússia, apostrofada como “país do amor” Enfim, a biógrafa de Rousseau, Tolstói, Rosa Luxemburg e (sua última obra) Romain Rolland, separou-se do partido comunista, gravemente decepcionada. A autora dos grandes hinos “Aos quebrados” e “Reza ao Socialismo” tinha reconhecido os motivos puramente humanitários (e religiosos) do seu radicalismo político e social. Nunca renegou, porém, esse seu socialismo humanista, fé de sua vida. Nessa fé, que ainda é a de tantos dos melhores europeus, morreu Henriette Roland Holst.
No momento de sua morte, que foi motivo de luto nacional, rebentou o escândalo da revista “Podium”, órgão de vanguardistas surrealistas, neonaturalistas e outros rebeldes: denunciaram-se tentativas das autoridades de sufocar, financiariamente, a revista, porque tinha publicado capítulos do romance “Eu tenho sempre razão”, de W.F. Hermans, que foi líder literário da Resistência holandesa. Chegaram a processar, por blasfêmia, o autor dessa obra, uma das mais significativas da literatura europeia de hoje. O personagem principal, Lodewijk Stegman, sempre foi rebelde: contra seus pais e contra o país, contra seus professores e contra a religião. A ocupação alemã, interrompendo-lhe os estudos, serviu-lhe para entregar-se à vida boêmia. Da guerra na Indonésia desertou, preferindo ao serviço militar os negócios do mercado negro e os amores fáceis, embora dolorosos. Seu supremo egocentrismo tampouco lhe permitiu continuar as esboçadas atividades revolucionárias. O que Lodewijk quer é simples e difícil ao mesmo tempo: quer sempre ter razão, contra todos os outros. E é isto o que não perdoaram ao seu autor, W.F. Hermans.
O romance é superior à maior parte das obras existencialistas, hoje tão famosas. Hermans não é, aliás, adepto da filosofia de Sartre nem de filosofia alguma. Descreve, magistralmente, um caso psicológico: a transformação da Resistência em ressentimento. É definitiva a frase pela qual Lodewijk pretende justificar sua posição fora de todos os partidos políticos: “Quem insulta o próximo, chamando-lhe de fascista ou chamando-lhe comunista, sempre tem razão.” Concluíram os críticos que o próprio Hermans é niilista. Mas antes merece ser chamado de geógrafo que descobriu país novo, espécie de “terra de ninguém”. Na primeira guerra mundial, a tática das trincheiras criou espaços humanos devastados, almas sem rei nem lei: perdidas, se não afirmassem que, apesar de tudo, têm razão. Lodewijk quer ter razão, a todo custo, mesmo ao preço de dar razão a todos os outros ao mesmo tempo, de modo que, no fundo, ninguém tem razão. Está tudo perdido.
Mas quanto à extensão desse “tudo” divergem as opiniões. No início, todos se sentiam ofendidos. Depois, alguns críticos mais benevolentes pretenderam “desculpar” o autor, analisando-lhe a psicologia: Hermans seria representante típico da mocidade de hoje, complexo de angústias e pretensões igualmente excessivas. Mas o “caso Hermans” não é de ordem psicológica. Lembra uma frase de Henry Adams, burguês de quatro costados, que estava indignado contra o revisionismo de Eduard Bermstein: “Se os marxistas desistem da esperança revolucionária, qual é a fé que ficara ao Ocidente?” Quis o americano, que não era nada socialista, que pelo menos “os outros” tivessem razão. Mas depois das experiências de 1918 e 1945, da “revolução que não houve”, W.F. Hermans parece ter razão, afirmando que a fé de Henriette Roland Holst está perdida.


Diário Carioca, 28 de junho de 1953

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Van Ostaijen - por Walter C. Costa e Philippe Humblé

Seu barco saiu à tempestade. Depois de 32 anos de vida transtornada, Paul Van Ostaijen naufragou em 18 de março de 1928 em um sanatório de Miavoye-Anthée, nas Ardenas belgas, vítima da então incurável e muito literária tuberculose.

Ao longo de sua curta vida Paul Van Ostaijen, seguramente o maior poeta de língua holandesa (ou, mais exatamente, língua neerlandesa) do século XX, praticou uma variedade de estilos poéticos que revolucionou a poesia de Flandres e da Holanda e que certamente teria influenciado a poesia internacional se sua língua materna possuísse uma irradiação demográfica mais importante. O que acontece com Van Ostaijen acontece também a outros gigantes literários como Fernando Pessoa e Machado de Assis, ainda não inteiramente reconhecidos como escritores do primeiro time da literatura universal por terem escrito em uma língua “clandestina”, é o português. (A ironia da história: é justamente na Holanda através do trabalho do tradutor-escritor August Willemsem, que Machado de Assis começa a ter suas primeiras traduções à altura do original).

Paul Van Ostaijen nasceu em 1896, no porto belga de Antuérpia. Seu pai, pequeno empresário, era de origem holandesa. Sua mãe provinha do norte da Bélgica. A vida do pequeno Paul transcorreu sem maiores acontecimentos, o menino obtendo resultados escolares medíocres até que se afasta da escola, em 1913, para começar a trabalhar como funcionário na prefeitura de Antuérpia. Nesse momento, Van Ostaijen  já escreve e se engaja luta de emancipação do povo flamengo contra a opressão de uma burguesia, uma aristocracia e. um clero de Flandres que tinha optado pela língua francesa, renegando a cultura flamenga.

Os primeiros escritos de Van Ostaijen são poemas marcados por um romantismo juvenil, dentro dos padrões tradicionais. Seu primeiro artigo publicado, “Arte de Agora”, revela sua paixão pelas artes plásticas - paixão que persistirá durante toda sua existência. Quase todos os seus melhores amigos são pintores e o elemento pictórico será essencial em livros de poemas como As Festas de Angústia e Dor (De Feesten Van Angst en Píjn). Nos últimos anos de vida ele fará da venda de obras de arte a sua fonte (ainda que precária) de sustento.

Quando se desencadeia a 1ª Guerra Mundial, Paul Van Ostaijen se encontra em Antuérpia, cidade-chave no conflito, já que está rodeada por fortificação. Depois de um intenso bombardeio, a cidade cai finalmente em poder dos alemães. As vivências do poeta durante os enfrenta­mentos são descritas em seu poema longo “Cidade Ameaçada” (“Bedreigde Stad”).

Em setembro de 1917, sob a ocupação alemã, um acontecimento, até certo ponto banal, será determinante para o curso posterior da vida de Van Ostaijen. Durante urna cerimônia religiosa, o poeta vaia o cardeal Mercier, conhecido por suas opiniões abertamente antiflamengas. Van Ostaijen é preso e posto em liberdade quase em seguida, mas os diferentes processos que se seguiram aumentarão a pena inicial de três meses de prisão para onze meses, razão pela qual o poeta resolve fugir, um ano depois dos fatos, para a Alemanha, no momento mesmo em que as tropas aliadas a avançam sobre a Antuérpia.

Durante a ocupação alemã, parte dos flamingantes (partidários da “causa flamenga”) se havia aliado aos alemães pensando que, assim, poderia conseguir quebrar a dominação francófona. Mesmo que Van Ostaijen nunca tenha simpatizado com o ocupante alemão, preferiu não correr nenhum risco e não se engajou em nenhuma ação que pudesse levá-lo a uma nova condenação. Em novembro de 1918 Van Ostaijen instalou-se em Berlim, onde permaneceu mais de três anos, junto com sua amada Emmeke em condições próximas da miséria.

 O relacionamento de Van Ostaijen com Emmeke Clément, com quem manteve relações amorosas e de amizade até o fim da vida, não foi ainda devidamente esclarecido. Van Ostaijen conheceu-a no outono de 1917 quando os alemães ainda ocupavam Antuérpia. Emmeke era três anos mais velha que o poeta e saia de um casamento de quatro anos. Paul Van Ostaijen permanece­ria sempre ligado a ela, mesmo depois que Emmeke - com o consentimento do poeta - se casou com um alemão. Poeta, que deliberadamente se separou de sua amada, o destino de Van Ostayen é análogo ao de Kierkegaard e Kafka, escritores talvez tão impenetráveis quanto ele.

Durante sua estada em Berlim, Van Ostaijen continuou seu trabalho de escritor e entrou em contato com os dadaístas, com quem finalmente acabou na cadeia por seus “excessos” no comportamento.

Nessa época Paul Van Ostaijen publica vários artigos sobre artes plásticas, literatura e sobre a luta de emancipação do povo flamengo.

Em 1920 publica De Festen Van Angst an Pijn (As Festas de Angústia e Dor) e Bezette Stad (Cidade Ocupada). Por seu niilismo e seu desespero, estes dois livros se demarcam muito claramente de suas obras anteriores Music-Hall e Het Sienjaal, onde transparece sua fé expressionista em um mundo renovado. Não surpreende que em Het Sienjaal se possa rastrear alguma influência de Whitman. Ele próprio admite também a influência de Else Lasker-Shuler. Em As Festas de Angústia e Dor e em Cidade Ocupada é visível a influência da poesia de Apollinaire, o que, aliás, o próprio poeta admite. Estes dois últimos livros - o primeiro escrito a mão e em várias cores - se destacam pela ruptura radical com a tradição poética - eles pertencem à linhagem do Mallarmé do “Coup des Dés” os poemas são palavras soltas, gritos atormentados sublinhados por uma tipografia sofisticadíssima próxima das experiências dadaístas e surrealistas. No entanto, a configuração dos poemas de Van Ostayen é original e guarda independência em relação aos novos padrões da vanguarda européia.

Não suportando mais sua vida em Berlim, Van Ostaijen volta a Antuérpia, onde leva uma vida clandestina, à espera de uma anistia. Anistia que chega finalmente e o poeta passa a ganhar a vida como “marchand”. Desse momento já não publicará nenhum livro de poesia. Em meio de 1926, Van Ostayen descobre haver contraído tuberculose, de que vem a falecer em setembro do ano seguinte.

A influência de Van Ostaijen nas letras flamengas e holandesas tem sido enorme, a tal ponto que um número considerável de poetas em Flandres e na Holanda se debateu em vão para libertar-se de sua presença esmagadora.

Em pouco mais dez anos de atividade poética, Van Ostaijen (que viveu apenas 32 anos) revolucionou a poesia de língua neerlandesa e introduziu nela novos procedimentos, ainda hoje dominantes.


Philippe Humblé e Walter Costa,
(matéria publicada em jan/1985 no suplemento
da Folha de São Paulo intitulada Folhetim.)


POEMAS QUE ACOMPANHAM A MATÉRIA



VERSO 6
Eu não posso colecionar selos
Eu não posso colecionar fotos de mulheres
Eu não posso colecionar namoros
nem sabedoria
eu já não posso nada mais
          eu já não posso nada mais
Porque não apago a luz
          e não vou pra cama
Eu quero provar
          estar nú
          pelado quem sabe sim púrpura gelada
                                                e palidez
Não é assim o próprio princípio principiante
Eu não quero saber nada
eu não quero perguntar
          porque
          eu não me tornei um colecionador de selos
Eu começarei por dar meu fracasso
Eu começarei por dar minha falência
Eu me darei um pobre despedaço de terra
                              uma terra pisoteada
                              uma terra de urzes
                              uma cidade ocupada
Eu quero estar nu
     e começar

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



MELOPÉIA

Sob o luar escorre o longo rio
Sobre o longo rio escorre cansada a lua
Sob o luar no longo rio escorre a canoa pro mar

Pela canalta
Pelo pradalto
escorre com a lua que escorre a canoa pro mar
Assim são parceiros pro mar a canoa a lua e o homem
Por que escorrem a lua e o homem ambos mansos pro mar

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



PAISAGEM  DE OUTONO

Na neblina é devagar um boi com um carro de boi
andando junto à neblina nunca perde o passo
o boi do carro de boi
Fora da neblina dentro da neblina com o carro tropeçando
firme não adormece o carroceiro
num sono sem trilhas

Atrás do carro bóia luz de lanterna
uma mínima cunha de clareza na negrofunda rua

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



O VELHO

Um velho na rua
sua pequena história para a velha
não é nada soa como uma tragédia rarefeita
sua voz é branca
parece uma faca tão longamente afiada
até o aço ficar magro
como um objeto fora dele se pendura esta voz
sobre o preto comprido casado
O velho magro em seu casaco preto
parece uma planta preta
Vê você isto joga a angústia por sua boca
o primeiro saborear de uma narcose

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



NOITE

Ah, minha alma é só som
Nesta hora de só cor;
Sons que se elevam soltos
Num sonso jardim de odor.

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



POEMA

E cada nova cidade
    flor que murcha
              outono amarelece a flor

              serão todas as cidades assim
              serão todas assim
              assim são todas

Em todo lugar
em todo lugar e em nenhum
             todo lugar é nenhum
em todo lugar
             os mesmos bombons tristes em copos
             bebida fica pérola não há sede
uma canção está em todo lugar             de amor e adultério
             serão todas as cidades assim
             serão todas assim
             assim são todas

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)



BERCEUSE PRESQUE NÈGRE

Não participa o chipanzé

Por que não participa o chipanzé
                              O chipanzé
                                           tem
                               enjôo do mar
Tem tanta água no mar
imagina o chipanzé

(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)


domingo, 1 de novembro de 2015

Camphuysen por Bandeira

Nos arquivos da Biblioteca Nacional (Correio da Manhã, 19 de novembro de 1944): Camphuysen, poeta holandês medieval, traduzido por Manuel Bandeira e com introdução de Otto Maria Carpeaux.




Van Ostaijen, poeta holandês

Van Ostaijen, poeta holandês

Por José Roberto Teixeira Leite

O desconhecimento, no Brasil, da moderna literatura holandesa é um fato. Há tempos dedicou Otto Maria Carpeaux um artigo à obra e à personalidade do romancista Multatuli (pseudônimo de E. D. Dekker, 1820-1887), autor do romance Max Havelaar, onde se analisa a crueldade da colonização holandesa nas Índias; e em suas Noções de História das Literaturas dedicou Manuel Bandeira – estribado em Van Thiegen e Prampollini – uma das poucas páginas a essa literatura que são os pontos mais elevados Vondel, no passado, e no presente Huizinga, Coster, o grande poeta Kloos, Van Oudshoon – autor de Willem Merten - , etc. Mas foi só: nenhuma outra referência ou alusão encontramos, no Brasil de hoje, a essa literatura que teimamos em ignorar, decerto acreditando na tão propalada invenção de que, ao contrário da pintura – tão importante desde o século XV –, a literatura dos Países Baixos não tem grande valia. Não a terá, decerto, se comparada à pintura – gênero natural de expressão, em que os neerlandeses melhor se acharam e ainda se acham. Mas não há como subestimar a prosa e a poesia holandesas, embora uma língua particularmente difícil e pouco utilizada fora dos Países Baixos seja entrave quase insuperável a seu conhecimento. É modesta contribuição a tal conhecimento o presente artigo, que trata de um dos mais originais poetas europeus do século atual: Paul van Ostaijen. Depois, é de importância realçar a obra desse escritor falecido em 1928, numa época em que uma boa parcela da jovem poesia brasileira, influenciada pela concretismo, tenda valorizar, no poema, aquele lado visual tantas vezes desprezado anteriormente. Porque Van Ostaijen, a quem não podemos considerar um concretista, a não ser resvalando em grosseira generalização, em muitos de seus poemas antecipa-se a certas conquistas espaciais dos concretistas, podendo ser inclusive considerado um precursor da tendência.
Não é estranhável que Paul van Ostaijen tenha principiado sua carreira de escritor por uma obra dedicada às artes visuais. Tinha então apenas 22 anos – nascera em 1896 –, e a Grande Guerra – que a de 1939-1945 provaria, até segunda ordem, não ter sido tão grande como muitos julgavam –, chegava a seu fim com a derrota alemã.
Entusiasmado pelas conquistas da arte moderna, preconizava-lhe – numa época heroica e ainda indecisa – um brilhante futuro no seio da civilização ocidental. Criado num ambiente ultra burguês – pai catoliaão, capitalista –, numa das cidades mais burguesas da Europa, Antuérpia, frequentando na infância e adolescência os meios burgueses de que cedo se enojaria, era por uma vida de artista e pelo fascínio da arte e da poesia modernas que Van Ostaijen procurava dar vasas à sua nausée. No ambiente de verdadeiro charco estagnado que era, do ponto de vista cultural, Flandres de antes da Guerra de 1914, Van Ostaijen era dos poucos jovens que procuravam novas modalidades de expressão, uma reação qualquer contra o marasmo reinante. Simbolismo e dandyismo – movimento de que talvez, no Brasil, fosse eco da afetação de Afrânio Peixoto nos inícios de sua carreira, na Bahia, o Julio Afrânio que publicara Rosa Mística e que, muito e muito jovem, atravessava as ruas de Salvador com um lenço na sinistra e uma rosa rubra na destra... –, simbolismo e dandyismo eram duas escolas literárias em voga, à época, no Flandres; e o último, como é claro, derivado do primeiro. Van Ostaijen ingressou nas fileiras do segundo, para grande desgosto do pai, a quem repugnava a vida boêmia, de artista desmiolado, levada pelo filho; travaja-se bizarramente, com modelos que ele próprio desenhava, e granjeou a alcunha de Míster 1830, algo paradoxal no rapaz que, alguns anos depois, proclamaria as excelências da estética moderna. Mas como e não possível reconhecer no Afrânio Peixoto de seus melhores romances o doidivanas de Rosa Mistica, também o Míster 1830 não deve ser confundido com o poeta lírico Van Ostaijen, nascido de suas cinzas.
A invasão alemã da Bélgica, e a ocupação da Antuérpia, de 1914 a 1918, pelas tropas germânicas, possibilitará ao jovem poeta maior amadurecimento, levando-o a abandonar o dandyismo – cuja filosofia de ceticismo um pouco à la Oscar Wilde já não condizia com os termos da realidade brutal que estava então vivendo. O fundo místico do poeta, porém, breve irá fazer com que ele seja um dos entusiastas seguidores do Unanimismo de Jules Romais, de cujo espírito acha-se impregnado seu livro de estreia, Music Hall (1916). A publicação de Music Hall causou, aliás, espanto e escândalo, já que no volume quebrava Van Ostaijen inteiramente com aquela tradição literária a que se tinham acostumado todos, em Flandres. Alguns de seus poemas mais próximos da poesia de Jules Laforge, por exemplo, por sua ironia foram duramente criticados. Em Het Sienjaal, segunda coletânea de versos, aparecida pouco após o termino da Guerra, Van Ostaijen resvala para um humanitarismo, um sentimentalismo, por vezes, de que posteriormente recuaria, rejeitando, então, o volume. Isso não impediria, porém, que uma legião de imitadores começasse, na Bélgica e na Holanda, a poetar à maneira segunda de Van Ostaijen.  Em 1918, após um malogro político – Van Ostaijen era partidário das ideias ativistas, isto é, sonhava com a independência da Bélgica de língua holandesa –, o poeta é obrigado a exilar-se em Berlim. Ali demorar-se-á até 1921, tomando parte ativa no movimento desencadeado e mantido pelos orientadores da revista Der Sturm, com Herwarth Wlaten à frente. Era porém com pintores e escultores que gostava de trocar ideias - e aí surpreendemos, mais uma vez, a vocação de visual do próximo autor de Bezette Stad (1921). Escreveu, durante o período berlinense, uma grande quantidade de narrativas. Grotescas umas, burlescas outras, irônicas, absurdas, satíricas. Foi, avant le mot, um dos que se valeram, e com êxito, da escrita automática, que os surrealistas levariam ao paroxismo. Foi decerto de suas conversas com os artistas visuais que derivou a ideia, que desenvolveria posteriormente numa teoria, de que a forma do poema é o próprio poema, e subordinar essa forma a uma temática determinada é restringir o poema. Usando de termos mais pictóricos, mais visuais, diríamos que Van Ostaijen chegava à conclusão de que deveria dar maior importância à matéria poética, do que à essência, ao anedótico. Inventou, então, uma tipográfica rítmica, apelando para a forma visual do vocábulo – não à maneira de Appolinaire ou à de Sá-Carneiro, em seu Manucure, para ilustrar o texto: ao contrário, para ampará-lo. Usou tipos de vários corpos e impressos em diferentes cores, não como um recurso pitoresco, mas porque sentia a necessidade de basear seus textos com elementos visuais. Datam de tal época os poemas de Feesten van Angst en Pijn, espécie de continuação de Bezette Stad. O regresso à Bélgica dá-se em 1921, quando já a saúde de Van Ostaijen começa a declinar. Abre ele, em Antuérpia, uma galeria de arte – que depois troca por outra, A La Vierge Poupine, em Bruxelas. Em A La Vierge Poupine organiza uma série de exposições de artistas contemporâneos, belgas ou estrangeiros. Tenta formar uma escola flamenga moderna, mas fracassa em seu intento. Entrementes, escreve alguns de seus melhores poemas, imbuídos daquele puro lírico que definia nessas palavras significativas e atuais: “Estou procurando o poema sem sujeito: o sujeito do poema é o próprio poema”. Em 1928, poucos meses antes de morrer, aos 32 anos, vítima da tuberculose, funda Paul van Ostaijen com Burssens e Du Perron a revista Avontuur. Era já tarde em sua vida, porém. Calar-se-ia em breve a voz do poeta, que morreu quando apenas entrevia o seu verdadeiro caminho, e quando buscava sem desânimos dar vasas à sua mensagem.    



Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 14/02/1959. A tradução do poema é do próprio José Roberto Teixeira Leite.